Cineasta itaunense participa de festivais internacionais com filme sobre o povo do “Bar da Relia”, no Mirante

Curta-metragem de Ralph Antunes, “Tudo que vi era o sol”, será exibido na próxima terça-feira (17) dentro da programaçāo do FestcurtasBH, na sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes

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O jovem itaunense Ralph Antunes, 33,  filho do Pinóquio da Maria do Nego, lá do bairro Santo Antônio, ou melhor, do Mirante, é um cineasta apaixonado pelo que faz. Sua mais recente incursão pelo mundo da Sétima Arte é um curta-metragem, “Tudo que vi era o sol”, que reproduz um pouco do ambiente das imediações do Mirante, onde está instalado o “Bar da Relia”, comandado pela incansável Dona Maria e o filho Gilmar Antunes, mais conhecido por Pinóquio.

Ralph está no Chile, onde, num grande festival de cinema alternativo ou filme-arte, mostrou sua produção em curta-metragem. Antes da sua participação na mostra, ele falou, por WhatsApp, com o Jornal S’PASSO sobre o filme, o cinema e sua vida.

Ralph Antunes é formado em Artes Digitais pela Escola de Belas Artes da UFMG, e, desde 2009, se dedica à produção audiovisual. Entre 2010 e 2011 assinou a edição do Quiproquó, programa semanal dedicado às artes cênicas veiculado pela Rede Minas de Televisão. Como assistente técnico, trabalhou de 2011 a 2014 com as cineastas Clarissa Campolina e Marília Rocha, e a produtora Luana Melgaço, na Anavilhana Filmes, tendo participado de diversos trabalhos realizados pela produtora. Como assistente artístico, desde 2014 trabalha ao lado do cineasta e artista plástico Cao Guimarães, coordenando o workflow das produções audiovisuais do artista e fazendo a comunicação de seu estúdio com as instituições de arte ao redor do mundo.

Atuou também como técnico de imagem digital, em diversos projetos de longa-metragem, como A cidade onde envelheço, de Marília Rocha, Os Sonâmbulos, de Tiago Mata Machado, A Torre, de Sérgio Borges, Baixo Centro, de Ewerton Belico e Samuel Marotta, e Marte Um, de Gabriel Martins. Seu primeiro trabalho autoral como montador foi o curta-metragem Carga Viva (2013) (de Débora de Oliveira e Vinícius Rezende), que teve grande circulação pelos festivais de cinema, com estreia no 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Realizou, em parceria com Débora de Oliveira, o curta-metragem Boa Morte (2015), vencedor do 1º Prêmio BDMG Cultural – FCS de Estímulo ao Curta-Metragem de Baixo Orçamento, também com grande circulação pelos festivais nacionais.

Em 2023 lança o curta-metragem Tudo Que Vi Era o Sol, que teve estreia internacional do 30° FIC Valdívia e estreia europeia no 21° Doclisboa.

Ralph sempre gostou de assistir filmes, principalmente aqueles considerados diferentes, fora da programação televisiva, mas foi um professor de História, Paulo Oliveira, quando estava no primeiro ano do ensino médio, que contribuiu para que seu gosto pelos filmes-arte fosse ampliado. Paulinho lecionava História e Filosofia, e as aulas foram muito significativas para a formação de Ralph, além do ensino formal. O professor emprestou-lhe um DVD de Alfred Joseph Hitchcock, diretor britânico – 1899-1980, “O festim diabólico”, feito com apenas cinco cortes, que o marcou definitivamente. “Vi esse filme e, como diz, ‘chapei o coco’. Fiquei muito tocado. Sempre tive muita curiosidade técnica para saber como as coisas são feitas. A partir de então comecei a estudar os termos do cinema, peguei vários filmes de Hitchcock para assistir, os clássicos. Fiz uma lista com os filmes que era importante eu conhecer e, desde então nunca mais parei. Fui procurar uma faculdade, fiz Belas Artes, na UFMG, pude puxar matérias da Comunicação, como optativas, ligadas ao Cinema. Fiz todas possíveis, de cinema, fotografia”, conta.

As primeiras atuações no cinema

Comecei a trabalhar também como editor e montador. A parte mais técnica me interessou muito. Fiquei quase dois anos na Rede Minas editando um programa sobre teatro. Essa experiência foi muito boa porque aprendi muito e tornei-me mais ágil nessas técnicas de edição.  Depois fui trabalhar numa produtora de cinema, comecei a conhecer um pouco mais do cinema brasileiro independente, fui fazendo amizade, ficando próximo do pessoal em BH. Nunca mais parei. Agora estou fazendo minhas coisinhas também e trabalhando em projetos de amigos. Para além disso tenho um trabalho fixo com um cineasta de BH, Cao Guimarães, já bastante conhecido, com produção, fotografia e muito mais. Estou com ele há dez anos.

Influências fora da curva

Das influências, muitos cineastas que não estão senão em festivais e em plataformas alternativas, poderia citar vários. Havia, em BH, um grande festival, que hoje está menor, chamado Indi, onde eram feitas retrospectivas de realizadores com vários filmes. Pude assistir a várias dessas mostras e ali me tocaram mais de perto com grande influência para o meu aprendizado dois cineastas, Béla Tarr, húngaro e outro, Apichatpong Weerasethakul, tailandês.

Tudo que vi era o sol

O filme ‘Tudo que vi era o sol’ veio de uma ideia que eu alimentava há algum tempo de filmar no bar da minha avó, o ‘Bar da Relia’, no bairro Santo Antônio. Eu cresci ali, nesse ambiente, pois minha avó mora no fundo. É um lugar que mistura um pouco de melancolia, com um ambiente cheio de vida, onde circulam várias pessoas, a maioria trabalhadores braçais: pedreiros, carpinteiros, pintores, gente da mineração, mecânicos; são trabalhadores e trabalhadoras que frequentam o bar há muitos anos. A princípio, a ideia era fazer um documentário, um pouco mais observacional, registrando as pessoas e situações que acontecem ali. Começamos, então, a desenhar um personagem, que é um dos frequentadores, o meu tio Gil (Gil Antunes) e a partir dele buscamos retratar os personagens que são os trabalhadores que, de certa maneira são invisíveis para a sociedade, que levam suas vidas aos trancos e barrancos. Queríamos mostrar essas vidas, por mais que melancólica, por mais que precária, às vezes, conseguem gerar um certo interesse poético. Essa é a magia do cinema. Com um enquadramento diferente, com uma proposta nova, a gente consegue transformar uma coisa em outra.

A morte presente o tempo todo

No filme, a gente acompanha esse personagem quase que como se fosse fantasma, sem saber de fato se ele vive nesse nosso tempo, se vive noutra dimensão. É um personagem que circula ali ao redor do bar, que trabalha, que tem o seu mundo, a sua namorada, os seus encontros. Mas, ao mesmo tempo, é um personagem que está ali à beira do abismo, à beira da morte.

É uma sensação que eu tive frequentando o bar; eram pessoas que, digamos, para além de invisibilizados, tinham uma relação com a morte muito específica. Eu cresci escutando meu pai falar de quantas pessoas, clientes do bar, que morriam por ano porque eles acabam se tornando dependentes químicos, não somente de álcool, mas também de outras drogas. E, acabam que empurram a vida assim meio que no piloto automático, sem muita perspectiva, pois sabem que a vida é dura mesmo. Como não têm para onde correr, acabam se jogando de cabeça no mundo das drogas, com esse ambiente de morte que rodeava um pouco o bar.

No filme, a gente traz um pouco do peso desse ambiente; não é um filme bonitinho, que não tem uma narrativa muito convencional. Mais do que contar histórias, a gente quis transmitir mais sensações, tentar entender quem são essas pessoas que, ao mesmo tempo são fantasmas, mas que são pessoas vivas e que estão ali frequentando um ambiente concreto. É quase como se fosse um limbo, a pessoa transita por dimensões diversas ao longo de sua vida.

Um filme de antes e de depois da pandemia

A feitura do filme a gente fez em três etapas. A gente foi para lá, ficou uma semana gravando no bar, com meu pai, minha avó, meus tios, meus primos… a gente assistiu esse material, viu o que estava bom, o que não estava e a partir daí começou a escrever as cenas para o meu tio, porque seria ele quem conduziria o filme, roteirizar a forma como esse personagem pudesse transitar por esse ambiente.

Aí veio a pandemia e a gente teve que parar os trabalhos. No final de 2021 a gente teve que voltar para filmar umas cenas que a gente tinha pensado e não havia conseguido fazer. Ficamos mais uma semana. Depois veio o trabalho de pós-produção, eu e Pedro Pedro Maia de Brito, que é diretor junto comigo e diretor de fotografia. Ficamos trabalhando na colorização do filme uns quatro meses, mais outros meses para a edição de som. As pessoas assistem a um filme e não sabem o trabalho que dá; cada etapa é super demorada. Eu e Pedro, como dominamos bem essas ferramentas, fizemos de forma bem artesanal.

Depois deste filme, estamos planejando um longa para continuar a história

Terminamos tudo em abril, maio e partimos para a etapa de distribuição, que é de mandar para os festivais, para onde o filme possa ter uma entrada. Felizmente estamos tendo convites muito legais: fizemos a estreia em Brasília, no início de setembro, num festival no Cine Brasília, que é um dos mais tradicionais do país. Agora estamos no Chile, num festival internacional, iremos, depois, para Portugal, num festival também muito tradicional e vamos fazer essa exibição em Belo Horizonte. Os convites estão chegando, temos a expectativa de fazer uma boa distribuição. A gente gosta muito do resultado final e as pessoas que estão assistindo têm dado uma resposta muito positiva; é um filme forte. E a partir do curta, estamos já começando a escrever um longa, com personagens que apareceram neste, já estamos numa etapa avançada de roteiro. Tomara que a gente consiga financiamento. Dando tudo certo, a gente volta para Itaúna para fazer o longa.