Naqueles tempos da “Sérgio Livraria”

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Que história é essa?

Sílvio Bernardes

“Ele era um menino/ valente e caprino/ um pequeno infante/ sadio e grimpante/ anos, tinha dez/ e asinhas nos pés”. Não Vinícius, ele não tinha dez anos, tinha dezesseis. Era dimenor. Trabalhava na Sérgio Livraria, sob o comando firme e terno da Dona Bernardina Saldanha Herculano,  e sonhava em ser escritor, músico e muito famoso. Enquanto as escritas não aconteciam, o aprendizado da música não se facilitava e a fama não vinha, vivia caçando indaca. Ainda assim trabalhava durante todo o dia, de segunda a sexta-feira, de contínuo naquela papelaria – sim a “Sérgio Livraria” era uma papelaria, sofisticada e que vendia, também, livros para contadores e de estórias infantis, material de escritório e um colosso de outras coisas.

A Sérgio Livraria, em plena Praça da Matriz, era uma loja muito sortida, de material de escritório, artigos destinados a eventos de ocasião, como o carnaval, as festas juninas, o Natal etc. Era, em sua época, o melhor estabelecimento de material escolar da cidade, com inúmeras novidades coloridas em cadernos, pastas, lápis de cor, papel para encapar, canetas esferográficas, cartolinas, papel celofane, estojos, folhas de seda…

Ali, naquela papelaria eu fui um arremedo de gente laboriosa na condição de contínuo. Visitava quase que diariamente os escritórios dos mais variados negócios, pontos comerciais e de prestação de serviço em toda a cidade. Conheci empresas e empresários de todos os ramos. Andava por toda a cidade como um judas que perdeu as botas, como alguém que comeu canela de cachorro. Ser contínuo era a continuidade – agora, na condição de trabalhador, vestido e calçado – do menino de rua que eu era em criança. Entregava documentos, pastas, xerox e ouros trens; e cobrava dos clientes as contas vencidas e em muito atrasadas no pagamento. Algumas dessas notinhas de cobrança, coitadas, não tinham solução, eram lançadas numa caixa por nós apelidada de “caixinha das almas”, destinadas aos maus pagadores, com pouca ou nenhuma chance de serem quitadas. Ficavam ali um tempão até que eram definitivamente esquecidas ou, finalmente (aleluia!!!!), pagas. Aquele emprego foi uma das mais profícuas escolas de convivência humana da minha existência. Aprendi a tirar xerox – as cópias de documentos que eu conhecia, até então, eram feitas em papel carbono ou nas rudimentares máquinas de mimeógrafo do grupo escolar –, bater carimbo, validar recebimento e a diferença entre um recibo e uma nota fiscal. Foi como contínuo que eu ouvi pela primeira vez a palavra autenticação. Ué, não é autentificação? Autentificar o documento? Ahn!!!! E dessa forma, também, conheci o que era uma cópia heliográfica e uma máquina que produzia as tais cópias heliográficas, com o seu intenso cheiro de amônia.

Por aquela loja, na Praça da Matriz, onde tudo acontecia – ou podia acontecer – passavam diariamente as figuras mais emblemáticas desta cidade; gente rica, de posses, com nomes, sobrenomes e pedigree; e, também, tipos populares, alguns sem eira nem beira, que a gentileza dos bons tratava com simpatia e paciência, como o Simão, a Doneta, o Paulo Tolelê, o Pauzinho, a Margarita do Marazito, a Sá Maria dos Brotos, a Ana Pescocinho, o Tião, o Tatu, o Timochen, entre outros.

Acredito que foi um tempo divertido também. Acho que foi.