Que história é essa? Nóis é pobre, mas é criativo

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Sílvio Bernardes

Fico vendo as pessoas hoje em dia dando uma nova chance a alguns objetos, proporcionando de verdade uma sobrevida para as coisas às quais dá uma pena jogar fora, que podem, ainda, ser aproveitadas. O copo de requeijão morre na mesa do café, mas vai renascer lá na cozinha, embaixo da torneirinha do filtro de barro para dessedentar esses dias de calor. A toalha velha e cheia de buracos é pano de poeira bacana, indispensável na faxina mais pesada. Assim é também com aquela camisa de meia – melhor, de malha – que,  parece, foi vestimenta usada durante a II Guerra Mundial, mas que ainda resiste bravamente, mesmo que a estampa esteja descolorida, a gola desberadada e uma das mangas tortas. Vira pano de poeira, espanador de pó do caralho. O pote vazio de sorvete não ficará sem serventia e, muito, menos será jogado junto das coisas inservíveis na cesta do lixo reciclável. É tupperware  danado de bom para guardar o feijão no congelador, a salada que sobrou do almoço  ou até mesmo como porta-treco no armário do escritório. Se for colorido, então, é coisa de luxo. Hoje eu passei perto de uma loja de produtos elétricos, aqui perto de casa, e estava lá, na calçada,  uma placa com a indicação de ‘vende-se’ para um carretel grande de madeira, desses para enrolar cabos de não sei o quê, ao preço de R$ 25,00. Fiquei pensando: que utilidade tem esse troço? Uma mesinha de centro? Brinquedo de criança? Suporte para vasos de planta? Que trem é esse?

O povo é criativo quando o assunto é reaproveitar objetos em casa. Muitos dizem que a breguice toma conta quando há exagero nessa ressignificação dos trem. Outros avaliam que está na moda customizar roupas, enfeites e adereços variados para as pessoas, a cozinha, a sala, o banheiro, o escritório etc. Pelamor de Deus! A latinha de milho verde vazia vira um porta-lápis em cima da mesa de trabalho, a lata do panetone vai guardar pão, bolacha no armário da cozinha, a xícara que perdeu a asa vira um pequeno cachepot para as prantinhas, como os cactos; e as garrafas de bebida já bebida (vinho, uísque, gim etc.) emprestam à decoração um toque de criatividade inusitado.

Desde os tempos imemoriais a mania de reaproveitar os troços é conhecida. Nóis era pobre, mas era muito criativo – e limpinho também – e,  vira-e-mexe, inventava uma nova destinação para aquelas coisas que poderiam ser jogadas fora. A lata de óleo de cozinha era cortada e tornava-se a caçamba do nosso caminhãozinho. A carroceria, ou cabine, era feita com lata velha de kitut. As rodas, de chinelo de borracha. As latas de sardinha, também, serviam para um colosso de brinquedo, carrinhos menores, por exemplo. O nosso telefone era feito com lata de mastomate da Cica. A peteca era construída com palha de bananeira, barbante (embira de árvore) e penas da galinha que a gente comia no almoço de domingo. Lata velha também fazia a festa no nosso carnaval do “bloco dos sujos” – mas nóis era limpinho. O couro pra dar aquele som nos tamborins improvisados vinha do curtume do Jandir Milagre.  Melhor era a nossa cola supimpa  para os papagaios e, até, para os trabalhos escolares, feita com água e farinha de trigo, o famoso grude. E falando em escola, a vida pobre nos ensinava que o papel de embrulho – ainda que de qualidade ordinária e de cores desbotadas – servia para encampar os nossos parcos cadernos. E que as caixinhas de retrós, Drima ou Corrente, colhidas no lixo da loja do Zé Nogueira, na Praça do Capeta, eram os nossos estojos para os materiais do grupo escolar.

Agora, o cúmulo do reaproveitamento de material era usar saquinhos de leite (os primeiros que apareceram por essas bandas) para fazer cortina ou capa de botijão. Me desculpem quem gostava, mas era feio pra dedéu.