Que história é essa? Sobreviventes de outros carnavais

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Sílvio Bernardes

Eu e meus comparsas que hoje carregam na cacunda algumas boas décadas de vida, impressas nas cãs nada prematuras – e nas carecas salientes ao brilho do sol –, somos sobreviventes de um tempo cheio de perigos e de adrenalina. É claro que naquele tempo não púnhamos fé em perigo algum, e a tal adrenalina não se relacionava com excesso de medo, mas de muita excitação.

Os meninos de outros tempos, os dinossauros de hoje, useiros e vezeiros das filas preferenciais de idosos de agora, bebiam água de torneira, com a boca na gomeira no quintal, depois de um jogo suarento de peladinha. E não adiantava a advertência da mãe: “menino, espera o corpo esfriá pra beber água, sô. Cê pode ter uma congestã e morre durinho!”. Qual o quê? Bebia-se água fresca misturada ao suor que escorria por todos os poros. Mas também bebíamos água de chuva que saía das goteiras dos telhados. Só não bebíamos, ainda, água que passarinho não bebe. Sobrevivemos às caminhadas nas enxurradas pela rua afora. Vez ou outra o moleque cortava o pé com caco de vidro no meio da água suja que escorria rente à calçada (calçada?). Sobrevivemos ao homem do saco que pegava menino feio pra fazer sabão, ao tarado da rua de baixo, ao lobisomem que adorava visitar nossos pés de goiaba nas noites de lua cheia dos tempos de quaresma, à loura do banheiro, à perna cabeluda que andava pelas ruas nas madrugadas escuras. Sobrevivemos ao bicho-papão, ao boi da cara preta e ao fiote de curuiz-credo. Sobrevivemos à mistura venenosa (irresponsável) de manga com leite e à água bebida para aliviar a secura do jatobá na garganta. Sobrevivemos ao prego enferrujado que o desavisado espetava o pé e, também, ao espinho de coqueiro, às ínguas que doíam pra dedéu depois da sapecada da taturana peluda. Escapamos (quase) ilesos das ferroadas dos maribondos quando a curiosidade mórbida nos instigava a cutucar sua casa na cumeeira. Entramos na casa pulando a janela (não despulamos) e não viramos ladrão; deixamos o chinelo virado e a mãe não morreu, pelo menos dessa vez e vítima desse mal irremediável. Vestimos a roupa pelo avesso e isso não nos fez mal (eu acho).

Sobrevivemos aos alimentos vencidos das prateleiras das vendinhas; ao olho gordo dos nossos inimigos – se bem que para isso havia a benzeção da Mãe Lurdes – e ao feitiço na encruzilhada (será que era pra nós?). Sobrevivemos às surras fenomenais da mãe que nos faziam dormir com o couro quente – chego até a sentir saudade das varas de marmelo. Isso é masoquismo dos bão. Sobrevivemos às histórias de assombração dos irmãos mais velhos e dos vizinhos de língua grande que sentiam um prazer sádico ante o nosso encolhimento, bater de queixo e olhos arregalados. Sobrevivemos ao aguamento quando nosso coleguinha comia um trem muito gostoso e não nos dava nem uma isquinha – e ainda falava com um sorrido maldoso: sente só o cheiro, não é pro seu bico, come com os óio, lambe com a testa.

Sobrevivemos à injeção de penicilina e benzetacil, ao sarampo, à coqueluche, à catapora, à varicela, às lombrigas e aos lombrigueiros, à dor de dente, às caganeiras que nos tiravam da sala de aula e nos faziam correr como um raio pelos corredores. Sobrevivemos aos piolhos, aos carrapatos, às pulgas e ao medo da peste bubônica.

Sobrevivemos à falta de uns cobres para as coisas mais prosaicas, como a matinê do domingo ou aquele doce na venda do Seu Zé Florzino; à falta de carne e de uma mistura no prato de cumê; às viagens de férias que nunca fizemos, à festa de aniversário e aos natais sem presentes. Sobrevivemos aos livros de segunda mão, à caixinha de lápis de cor com apenas 6 unidades, à roupa surrada, aos pés descalços sem chinelo e sem sapato. Éramos meninos da caixa e ante os olhares de bazófia dos meninos ricos, fingíamos indiferença e cara de paisagem. E sobrevivemos às bombas no final do ano do grupo escolar.

É, véio, nós somos sobreviventes de um tempo histórico. É tempo demais, sô. Graças a Deus!