Sete perguntas o médico Austenir Maciel Coelho do CTI do Hospital Manoel Gonçalves

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Austenir Maciel Coelho é médico, formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais em 2002. Cursou residência no Hospital da Polícia Militar, é especialista em Medicina Intensiva e trabalha como plantonista do Centro de Terapia Intensiva do Hospital Manoel Gonçalves desde 2003. A partir de 2011, assumiu a coordenação da unidade e integra o grupo de Enfrentamento à Covid que determina a linha de estruturação do Hospital frente à pandemia.

1- Na condição de profissional de saúde que está na linha de combate da pandemia da Covid-19, o que dizer nesse momento? Como é estar à frente de um trabalho extenuante e constantemente sendo observado, cobrado? O que tem sido mais desafiador? Há alegrias em tudo isso ao fim de cada dia?

Depois de um ano e meio de pandemia as dúvidas deram lugar a certezas. Certeza de que se trata de uma doença de alta transmissibilidade, por vezes se espalhando em uma família inteira após um simples encontro de fim-de-semana. Certeza de que é uma doença grave, com letalidade de 2 a 5%, ou seja, de cada 100 pacientes que adoecem, infelizmente, dois a cinco irão morrer. Certeza de que no atendimento dos pacientes, os equipamentos de proteção individual são eficientes, resguardando a saúde dos trabalhadores na assistência hospitalar. Certeza de como tratar os pacientes graves (quando entubar, como ajustar os parâmetros ventilatórios, como sedar, como tratar as intercorrências, como planejar a extubação, quais medicamentos devem ser usados etc.). Como plantonista, atuando na linha de frente, atendendo os pacientes graves, a sensação é angustiante. Já devo ter atendido mais de quatrocentos pacientes. Como lido apenas com os casos de internação hospitalar, tenho uma visão cinzenta da doença. Por mais que tratemos os pacientes seguindo todos os protocolos, infelizmente uma parcela importante deles não responde. A doença por vezes é avassaladora, destruindo completamente os pulmões do paciente. Isso traz muita tristeza para os profissionais. Ainda que façamos a intubação do paciente e o coloquemos no ventilador mecânico, muitas vezes, a inflamação que o vírus causa no pulmão cria uma barreira, impedindo o oxigênio de passar do alvéolo pulmonar para a circulação e, com isso, o corpo entra em uma situação de falência de múltiplos órgãos. Não tenho nenhum problema com cobrança e observação. Na verdade, nenhum médico que atua em terapia intensiva está satisfeito com o nível de mortalidade dessa doença. O que deve ficar bem claro para todos é que mesmo que todo o nosso trabalho seja na busca por melhores resultados, infelizmente há um limite para a nossa atuação. A COVID-19 é uma doença com potencial gravidade sim. Não ficamos satisfeitos em dar notícias ruins. O nosso desejo é que todos ficassem bem. Agora como coordenador do serviço, a situação é ainda mais desafiadora, pois me considero o responsável por guiar toda uma equipe de profissionais para atuar com zelo e profissionalismo no cuidado com esses pacientes. Tenho que garantir a segurança da minha equipe. Tenho que manter os nossos protocolos atualizados. Tenho que garantir que nenhum equipamento ou insumo falte para os pacientes. Talvez, o mais desafiador seja manter toda a engrenagem funcionando. Sabendo que somos um time em que todos dependem um do outro. Cuidar do paciente e da equipe assistencial em suas demandas materiais, emocionais e, por vezes, espirituais. Sim esse é o maior desafio: conseguir incentivar cada membro da equipe nessa árdua batalha. Agora temos alegrias sim. E são muitas. Alegria de olhar para trás e ver que não fugimos de nossa missão. Alegria de chegar em casa após um dia extenuante de trabalho com a sensação de dever cumprido. E sim, a alegria de ver os pacientes que se recuperam e que voltam a ter uma vida plena. Tudo isso faz valer a pena.

2- Na semana passada um jornal da cidade trouxe críticas e colocou em dúvidas o trabalho desenvolvido pelo CTI do Hospital Manoel Gonçalves. O senhor respondeu em “carta aberta a população de Itaúna”. Há ainda algo mais a se falar sobre o tema? O que levou esse jornal a tratar do assunto dessa forma?

Quanto a motivação da matéria desconheço a razão da publicação. De qualquer forma gostaria de enfatizar que o CTI COVID não está em dúvida. Estamos trabalhando com afinco e zelo, salvando vidas sim. Temos hoje médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, secretárias e equipe de limpeza alocados nessas unidades. Colocar em dúvida o CTI COVID é colocar em dúvida o trabalho desses profissionais que, desde o início da pandemia, vem se dedicando arduamente para promover cura, alívio e conforto para os pacientes. Gostaria que a população entendesse que tem sido difícil para nós também. Muitos de nós perdemos familiares aqui mesmo dentro do nosso ambiente de trabalho. Mães, irmãs, avós, tios e tias. Nós estamos aqui para ajudar e vamos continuar fazendo o melhor que pudermos.

3- A Covid-19 é algo muito novo, até mesmo depois de quase dois anos de pandemia. Na sua opinião, o que representa esse novo da doença? De que forma os profissionais da saúde, especialmente em Itaúna, estão aprendendo a lidar com o novo coronavírus?

A grande novidade dessa pandemia é o vírus combinar transmissibilidade alta e letalidade moderada dentro de uma sociedade de altíssima mobilidade e fronteiras fluidas. Na pandemia da gripe espanhola, por exemplo, as viagens intercontinentais eram marítimas levando-se semanas para cruzar o Atlântico. Hoje, um infectado entra em um avião na Europa e, em 12 horas, desembarca em Belo Horizonte. Com isso, cepas do vírus se disseminam com enorme facilidade. Um outro fator agravante é o fato de existirem muitas pessoas assintomáticas transmitindo o vírus. Isso torna bem difícil controlar a disseminação.

4- O Hospital Manoel Gonçalves e a Secretaria Municipal de Saúde andam lado a lado na luta contra a Covid-19? O trabalho de um é complementado pelo do outro? De que forma isso acontece? Ao final de tudo isso, quais as expectativas da atuação de ambos nessa guerra contra o vírus?

O Hospital Manoel Gonçalves é o único hospital de nossa cidade e naturalmente é o equipamento imediato a ser alocado nesse embate. A Secretaria Municipal de Saúde tem caminhado lado a lado com o Hospital nessa luta. O Secretário Municipal de Saúde trabalha junto ao Hospital e tem sido uma figura acessível no atendimento às nossas demandas. Os trabalhos dessas instituições são complementares sim. Cumpre ao Município a gestão plena do Sistema de Saúde e com relação ao atendimento hospitalar, a solução foi firmar mais uma vez uma parceria sinérgica com o Hospital. Frente a um adequado financiamento, o Hospital por sua vez tem se equipado e se adaptado para atender a demanda imposta pelo COVID. Cumpre ressaltar que o Hospital está envolvido no tratamento dos pacientes que já estão com a COVID. A Prefeitura, por sua vez, tem como encargo adicional trabalhar na conscientização da população para reduzir a transmissão da doença em nosso município. As expectativas futuras são a vitória contra a Pandemia e a perenização dos investimentos hospitalares, deixando o Hospital Manoel Gonçalves mais estruturado para manter o atendimento da população.

5- Há quem diga que o grande problema é ainda a negligência de muitas pessoas, que não perceberam a gravidade do momento e a letalidade da Covid-19, apesar dos números de óbitos evidentes. O que é preciso fazer (ou continuar fazendo) para que as pessoas compreendam melhor isso e auxiliem para que a doença seja controlada? 

A pandemia é uma doença da sociedade como um todo. O paciente na pandemia é o Brasil. Precisamos salvá-lo. Para isso, temos que baixar imediatamente o contágio. Historicamente, o que reduz contágio é bem conhecido: distanciamento social, uso correto de máscaras, lavagem de mãos ou uso de álcool gel 70%, isolamento domiciliar das pessoas com sintomas de gripe ou resfriado e, finalmente, vacinação. Somente com essa conscientização de que a pandemia não diz respeito a mim ou a você, mas sim ao outro, criaremos a condição de redução do contágio. Tomemos como exemplo a vacina. Ela tem o aspecto de proteger o indivíduo da contaminação e isso é verdade. Entretanto, a maior finalidade da vacina é criar uma população que não seja mais suscetível a adquirir a infecção de forma a bloquear definitivamente a transmissão do vírus.

6- No seu entendimento, essa pandemia poderia ter sido menos destruidora e não ter se prolongado por tanto tempo? Onde falharam os governantes e os gestores de saúde nas políticas públicas do país para que a pandemia se tornasse tão grave?

Sim, a pandemia poderia ter sido menos destruidora. Faltou aos gestores e à população um entendimento adequado da situação. Erramos ao minimizar a letalidade e a transmissibilidade da doença. Erramos ao não aplicar de forma correta o distanciamento social. Fizemos fechamento de comércio, sem conscientizar a população. O resultado foi aglomerações de pessoas em eventos particulares e a atividade econômica prejudicada. Erramos ao sustentar um discurso de divisão entre combate à pandemia e estímulo ao ambiente econômico. Não há economia sem vida e não há vida sem economia. É uma falsa dicotomia. Erramos ao sustentar um discurso de nós contra eles. Somos um país que até bem pouco tempo era marcado pela alegria e pela convivência pacífica. Faltou união. Faltou um discurso unificado. Faltou empatia.

7- Está nos debates políticos em todo o país, não diferente em Itaúna, o propalado tratamento precoce contra a Covid-19. A principal questão diz respeito à ineficácia desses medicamentos para aliviar os sofrimentos e evitar maiores consequência da Covid. Como médico e gestor de saúde, qual é sua opinião acerca do tema e do chamado ‘kit Covid’?

Essa questão vem de longe e merece uma análise mais profunda. Em ciência trabalhamos com uma teoria que é o princípio da hipótese nula. Nessa linha, quando propomos algum tratamento, partimos do princípio de que ele não funciona (hipótese nula). A partir daí, desenhamos os estudos para provar que o tratamento funciona. Em resumo, o ônus da prova compete ao proponente. Com os medicamentos antimaláricos, as vitaminas e os vermífugos que têm sido administrados para os pacientes com COVID, infelizmente não há nenhum estudo que ateste sua eficácia e, portanto, não devem ser usados. No momento, não há dúvida razoável sobre isso. Além de ineficácia, há um outro lado nessa questão. Ao preconizar o uso dessas drogas há o risco de criarmos na população uma falsa sensação de segurança que acaba por aumentar a exposição dos indivíduos e a transmissão da doença. E para os que dizem que tomaram e evoluíram, bem fica aqui o meu relato. Eu tive COVID em setembro de 2020. Permaneci isolado em domicílio. Não tomei nenhum medicamento e fiquei bem. No Hospital temos atendido pacientes que tomaram essas drogas e precisaram ser internados da mesma forma, que temos pacientes que não tomaram e precisaram ficar internados. Observamos óbitos em ambos os grupos. Fica só uma última ressalva com relação ao uso de corticosteróide. Os corticosteróides são medicamentos que usamos nos pacientes com COVID que já tenham um quadro de pneumonia viral. Nesse caso, os estudos demonstram benefício claro. Entretanto, o uso do corticoide fora desse contexto, pode ser prejudicial principalmente nos primeiros dias da doença, onde ele reduz a imunidade do paciente e facilita a replicação viral. Infelizmente, frente a uma doença sem um tratamento que funcione, não adianta administrar o que sabidamente não funciona. Também não podemos abandonar o paciente a sua própria sorte. Nesse caso, o sistema de saúde deve prover acolhimento, orientação e acompanhamento adequado de diversas formas (online, presencial, contato telefônico). Só assim, garantimos que o paciente se sinta seguro para enfrentar a COVID-19. Agradeço a oportunidade de manifestar-me aqui e agradeço também as inúmeras mensagens de apoio que nossa equipe CTI COVID vem recebendo durante toda a pandemia.

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